1.3.14

Red Dawn - Capítulo 8

Nada nessa vida é de graça

Tudo naquele corredor queimava, até as paredes de pedra cravada. Eu mal conseguia respirar, parecia até que tinham feito de propósito, como se soubessem que aquela era a última esperança para um grupo desesperado de jovens. Mas não havia nenhum grupo patrulhando a área, nosso maior desafio era simplesmente passar pelo fogo. Dei uma boa olhada, e apesar do fogo, tínhamos como passar correndo, porque as labaredas não estavam tão altas e as janelas quebradas faziam com que as chamas procurassem o ar lá fora.
Ainda sem pronunciar uma única palavra com meus recentes companheiros sobreviventes, simplesmente segurei firmemente seus pulsos e os puxei pelo caminho. Apesar da relutância de todos praticamente, ninguém soltou um muxoxo sequer. O silêncio era imprescindível. Na verdade, eu acho que ninguém sabia o que falar e protestar só resultaria com um abandono do reclamante, porque eles viram que eu estava decidida. Nesses momentos, não resta muito a dizer. Estávamos unidos na luta pela vida e eles preferiram confiar em mim. E assim começamos nossa ultima caminhada através das chamas. No fim do corredor, após muitos acessos de tosse e ânsias de vômito, duramente reprimidos e, claro, um acréscimo considerável ao número de queimaduras em todos os corpos, nós chegamos ao pé da escadinha que, milagrosamente, não havia sido lambida pelo fogo. Não contive uma exclamação de felicidade e aquele foi meu erro, um erro fatal. Do outro lado do corredor, justamente onde estivéramos havia poucos minutos, dois uniformizados armados nos ouviram e distinguiram as figuras infantis aglomeradas por entre as labaredas inclementes. Eles não pareciam dispostos a atravessá-las, então atiraram em nossa direção sem parar. As crianças menores choravam e se abaixaram, ouvindo e sentindo o ricochete das balas que a qualquer momentos os acertaria. Eu imediatamente forcei a porta do depósito, que graças aos céus não demorou muito a ceder. Houve empurra-empurra e muito pânico, mas todos conseguiram entrar. Os dois atiradores perceberam uma agitação e o sumiço dos pequenos corpos, e eu pude ouvi-los acionando um rádio e comunicando algo que eu não pude entender, mas sabia que não era nada bom, nada bom mesmo. Provavelmente logo teriam reforços e se não tivéssemos dado o fora a tempo, seríamos encurralados naquele cubículo e fuzilados sem piedade. A janela estava lá, entreaberta, deixando entrar uma brisa suave e quase surreal depois de tanta fumaça inalada. Subi numa lata de tinta e olhei para baixo. Era o segundo andar, uma queda feia, mas com muitos arbustos e grama fofa no canteiro rente à parede. Ao longe, o bosque cerrado não estava sendo vigiado e não havia sinal de nenhum atirador. Convinha arriscar. Era uma perna ou braço quebrado ou nossas vidas. Não era uma escolha difícil, pelo menos para mim. Indiquei a janela com a cabeça e o menino mais velho me olhou incrédulo, balançando negativamente a cabeça, notoriamente se recusando a pular. Eu fiz um gesto com os ombros indicando ‘’você que sabe’’, mas eu o jogaria com certeza. Não aguentaria viver sabendo que aquele menino fora morto a tiros, sem saída e sem esperança. A menina do braço quebrado chorava muito, sabendo que já estava comprometida. Meu tornozelo ferido também não resistiria ao impacto. O que me impedia de pular imediatamente era pensar no que fazer após a queda. Se quebrasse algum osso, principalmente da perna, me arrastar seria praticamente impossível, pois isso faria barulho e chamaria muita atenção. Os menores então... não seriam capazes de reprimir os gritos de dor. Então eu vi montes e montes de toalhas grossas, usadas nos vestiários e dormitórios. Pelo menos todas as toalhas usadas naquela parte do prédio ficavam guardadas ali, cerca de cento e cinquenta. Joguei uma, duas... tomando cuidado para que caíssem uma sobre a outra. Fiz isso o mais rápido que pude e no final, havia um tapete de toalhas, esperando para nos receber. Subi na janela, sob olhares desesperados e praticamente conformados com a morte certa, olhei para os rostinhos sujos de fuligem, sangue e lágrimas e me arrisquei a sussurrar: ‘’eu pego vocês lá embaixo, nós vamos sobreviver’’. E pulei.
A queda fora amortecida, mas uma queda de três metros é uma queda de três metros e não se sai totalmente ileso dela. Meu tornozelo, como eu havia suspeitado, não resistiu e eu senti o osso me perfurando a pele. Mordi a toalha com tanta força que machuquei o maxilar e por um minuto perdi a consciência. Quando voltei a mim e abri os olhos, o mundo girava e eu só sentia dor, dor e mais dor. Nem me atrevi a olhar o tornozelo, imediatamente olhei pra cima e um dos meninos se sacudia de tanto chorar. Eu estendi os braços pra ele, sinalizando que estava pronta. E então a menininha mais nova pulou. Mas eu não estava pronta. Quando ela caiu por cima de mim, mesmo sendo pequena, senti todo o seu peso no meu tornozelo com fratura exposta. Grunhi de dor, mas ela não pareceu ter quebrado nenhum osso, estava apenas em choque. Respirei fundo, várias vezes antes, de sinalizar novamente. O próximo a pular foi um menino de uns doze anos, que não estava tão machucado. Ele fez um gesto com a mão dispensando o meu auxilio e fiquei muito feliz, pois eu não o aguentaria. Se o peso da pequenina quase me fez desmaiar, o dele me causaria tanta dor que eu teria um ataque. Tirei a pequena do caminho e me arrastei para a grama, fazendo um monte com as toalhas. Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, fechou os olhos e caiu. Bateu com força no monte de toalhas, e rolou para o meio dos arbustos, fazendo bastante barulho. Congelei, temendo que atraísse atenção, afinal, alguma patrulha podia passar a qualquer momento. O mato alto nos escondia se estivéssemos abaixados, mas se houvesse movimentação, e fosse percebida, estaríamos fritos.
Ele também não parecia machucado, apenas alguns cortes após rolar para o meio dos galhinhos afiados. Outro menino, um garoto robusto de uns 14 anos, se adiantou e eu fiz sinal para ele trocar com o outro garoto. Minha ideia era que, sendo o outro o mais velho (um ano mais novo que eu, com certeza), deveria ajudá-lo a segurar a menina do braço quebrado. Após sumir por longos e agonizantes minutos, provavelmente para falar com o garoto, ele apareceu novamente no parapeito, olhando para o lado de dentro com um ódio sem tamanho. Concluí que o infeliz tinha se recusado. Ele fechou ainda mais a cara e pulou. Por ser mais corpulento (gordo, admito), ele aterrissou com um sonoro baque e caiu sentado. Achei que ele tivesse fraturado o cóccix, mas ele só estava atordoado e rapidamente se recobrou. Eu estava surpresa com a constituição daqueles jovens, muito embora nenhum deles estivesse muito machucado, além de mim e da menina do braço quebrado. Ela seria o maior desafio. Cerrando os dentes e sem nem precisar pedir a ajuda do menino gordinho, pensei ‘’nada nessa vida é de graça. Eu estou salvando essas crianças, mas muita dor será meu preço’’.

Sobre a Autora

Clarissa Ferreira, carioca de 18 anos, escritora de fanfictions e de outras histórias oriundas de sonhos legais. Gosta de Tolkien e histórias medievais, wiccaniana. Seus ídolos advindos da literatura são Morgana (com quem se identifica por suas mil faces), Éowyn (por sua independência) e a xará Clarissa (por sua inocência e curiosidade). Autores preferidos: Tolkien, Marion Zimmer Bradley, John Boyne e Érico Verissimo. Louca pelo universo da Terra Média e pelas maluquices de Jack Sparrow, escreveu fanfictions nunca terminadas sobre os dois mundos totalmente diferentes e assim desenvolveu paixão por elfos e piratas ''encharcados de rum''. Comedora de churraixco e bixcoito, viciada em chocolate e chiclete.

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